Nunca na vida tive um plano menos definido do que ao chegar a Bali.
Em toda a minha história de viagens mal programadas, esta é a que ocupa o primeiro lugar. Não sei onde ia dormir, não sei bem o que ia fazer, nem sei qual a taxa de câmbio.Mas Bali é um lugar muito simples para nos movimentarmos. Não é como se tivesse aterrado no meio do Sudão sem ideia do que fazer a seguir. É uma ilha pequena e é um destino turístico muito popular. Todo o lugar foi preparado para ajudar o ocidental com cartões de crédito a movimentar-se facilmente. Quase toda a gente fala inglês ou entende., o que me deixa aliviada. Ter estado lá não me custou mesmo nada.
Dei entrada em hotéis pequenos e engraçados. Os balineses são conhecidos pela sua amabilidade. Começam automaticamente a adorar-nos e a cumprimentar-nos pela nossa beleza assim que transpomos a porta de entrada.
O centro da ilha onde estive, Ubud, localizada nas montanhas rodeada por campos de arroz em socalcos e inúmeros templos hindus, com rios que correm rápidos por desfiladeiros profundos e arborizados e vulcões visíveis no horizonte. É considerado o centro cultural da ilha, o lugar onde floresce a pintura, dança, escultura, e cerimonias religiosas tradicionais. Há sempre macacos a andar livremente por ali e famílias balinesas envergando os trajes tradicionais por todo o lado.
Em Bali, há apenas quatro nomes que a maioria da população dá aos seus filhos, independentemente do bebé ser rapaz ou rapariga. Os nomes são Wayan, Made, Nyoman e Ketut. Traduzidos, estes nomes significam simplesmente primeiro, segundo, terceiro e quarto, e estão conotados com a ordem do nascimento. Se tiverem um quinto filho, inicia-se novamente o ciclo de nomes, por isso o quinto filho passa a ser conhecido por algo como Wayan segundo. Isto dá uma ligeira indicação da importância que a família tem em Bali, e da posição que se ocupa nessa família. Seria de esperar que este sistema pudesse tornar-se complicado, mas de alguma forma os balineses conseguem geri-lo. Compreensível e necessário, o uso de alcunhas é muito popular.
Todos eles andam de sarong. Todos os rostos são uma enorme enciclopédia de bondade, que nos apertam as mãos com força e sentimento assim que nos veêm. Bocas desflorestadas cheias de danos, mas mesmo assim com um sorriso lindo.
Quando estava em Ubud, o recepcionista Mr Gous (Gous de alcunha), saiu por detrás da secretaria e quis conversar comigo:
- Vem, senta-te, fala.
Eu fui, sentei-me e falámos. E foi assim que nos tornámos amigos.
Falou-me de Bali ... Bali é uma minúscula ilha localizada no meio do arquipélogo indonésio com três mil quilómetros de comprimento que constitui a nação mais muçulmana mais populosa do mundo. O hinduísmo da ilha foi exportado da Índia através de Java. Os javaneses de classe alta trouxeram para Bali apenas as famílias reais, os artesãos e os sacerdotes, portanto não é exagero quando toda a gente em Balia forma ser descendente de um rei, sacerdote ou artista, e é por isso que os balineses têm tanto orgulho em sê-lo.
As cerimónias religiosas são de grande importância em Bali (ilha com sete vulcões imprevisíveis, qualquer pessoa rezaria J). Estima-se que uma mulher balinesa típica passe um terço do seu tempo a preparar-se, a participar e a limpar-se vinda de uma cerimónia. A vida aqui é um ciclo constante de oferendas (cestos de palha colocados à porta de cada casa, estabelecimento cormercial, ou seja, um para cada hindu) e rituais. Têm de o fazer de forma correcta e com a intenção correcta, caso contrario dizem que todo o universo ficará desequilibrado.
Todas as crianças balinesas passam por uma cerimónia da puberdade em que os dentes caninos ou incisivos são limados até ficarem planos para melhorar a estética. Em Bali, a pior coisa que se pode ser é grosseiro ou animal e aqueles incisivos são considerados lembranças das nossas naturezas mais brutais e, por conseguinte, devem desaparecer. Numa cultura assim, é perigoso as pessoas serem brutais.
Os balineses não deixam os filhos tocar no chão nos primeiros seis meses de vida porque os recém-nascidos são considerados deuses enviados do céu e não seria próprio deixar um deus rastejar no chão juntamente com os restos de unhas cortadas e pontas de cigarros. Por isso. Os bebés balineses são carregados durante os primeiros seis meses, venerados como divindades menores. Se um bebé morrer antes dos seis meses, recebe uma cerimónia de cremação especial e as cinzas não são colocadas num cemitério humano porque aquele ser nunca foi humano, apenas um deus. Mas se o bebé viver até aos seis meses, então realiza-se uma grande cerimonia e os pés da criança têm permissão para tocar finalmente na terra e o pequeno é acolhido na raça humana.
Dado tudo isto, não tenho bem a certeza de quanto da visão balinesa vou conseguir integrar na minha própria visão do mundo, já que neste momento pareço ter uma definição mais moderna e ocidental da palavra equilíbrio (traduzo-a como liberdade igual ou a possibilidade igual de cair em qualquer direcção em determinado momento dependendo de como correm as coisas). Os balineses não esperam para ver como correm as coisas. Eles organizam a forma como correm as coisas. De forma a impedir que se desmoronem.
Quando andava pela rua e passava por um estranho, a primeira coisa que ele ou ela fazia era perguntar “aonde é que vai?” , e a segunda “de onde vem?”. Para um ocidental, isto poderá parecer um questionário algo invasivo vindo da parte de um perfeito estranho, mas estão apenas a tentar obter uma orientação sobre a nossa pessoa, para fins de segurança e conforto. A terceira pergunta que um balines certamente seria“é casada?”. Trata-se de uma pergunta de posicionamento e orientação. Têm necessidade de saber isso para se certificarem de que está tudo em ordem na nossa vida. Pelo que soube, se formos uma mulher solteira em viagem Bali e alguém nos perguntar se somos casadas, a melhor resposta possível é :”ainda não”!
O porquê desta viagem?
Ainda em Portugal tinha-me finalmente apercebido de que chegara a um estado de desespero capaz de ameaçar a minha integridade física por não estar a conseguir superar uma doença, e ocorreu-me que às vezes as pessoas nesse estado pedem ajuda a Deus. Por vezes na vida, subimos ao topo de algumas coisas, mas por vezes nadamos até ao fundo de outras. Ia praticando a arte de viver sozinha, por mais difícil que fosse mas toda esta experiência não estava a ser favorável para uma tão súbita mudança de vida. O facto de hoje conseguir escrever calmamente sobre isto é prova de que o tempo tudo cura, pois na altura não consegui aceitar tão bem as coisas.
O porquê Bali?
Porque me atraía a ideia de viver durante alguns dias numa cultura em que o prazer e a beleza eram venerados. Queria aquilo a que se chama o equilíbrio do bom e do belo. Ambos me tinham escapado nos últimos anos porque tanto o prazer como a devoção precisam de um espaço livre de tensões para florescerem, e eu vivia num gigantesco compressor de ansiedade. Quanto à forma de equilibrar a necessidade do prazer com o desejo de devoção...bem certamente haveria uma maneira de aprender esse truque . E pela minha curta estadia em Bali, parecia-me que talvez o pudesse aprender com os seus nativos. Não tanto porque quisesse explorar minuciosamente esse pais, o que já fora feito por muitas pessoas, mas porque queria explorar minuciosamente um aspecto de mim mesma.
Assim que cheguei, subi as escadas para o meu quarto, deitei-me na minha cama nova e apaguei a luz. Esperei que chegassem as lágrimas ou as preocupações, já que normalmente era isso que me acontecia quando as luzes se apagavam, mas na verdade senti-me bem. Senti os primeiros sintomas de contentamento.
O meu grande sentido de orientação e o grande conhecimento geográfico significam que já explorei muitos países. Estabilizei uma muito fidedigna bússola interna, com a calma que tenho sempre consegui manter a expressão competente que é tão útil quando viajamos para lugares distantes e diferentes. Aquela expressão super-relaxada, de quem tem tudo sob controlo, e que dá a ideia de pertencer ali, em qualquer lugar, em todos os lugares, mesmo no meio de uma cidade agitada como Denpasar.
Viajar é a grande paixão da minha vida. Senti que viajar valia qualquer sacrifício. Sou leal e constante nessa minha paixão por viajar, embora nem sempre tenha sido leal e constante nas minhas outras paixões.
Não fico completamente indefesa quando ando pelo mundo fora. Tenho o meu próprio conjunto de técnicas de sobrevivência. Sou paciente. Sei viajar com pouca coisa. Como sem receios. Mas o meu verdadeiro trunfo ao viajar é conseguir fazer amizade com qualquer pessoa. Se não houvesse mais ninguém com quem falar, provavelmente conseguiria tornar-me amiga de um poste. É por isso que não tenho medo de viajar para os lugares mais remotos do mundo, desde que lá haja seres humanos. Não posso dizer que tudo foi belo, tive muitos momentos difíceis e que lembro-me numa noite em particular, sentir um estranho gesto de amizade interior, a mão que dei a mim mesma quando mais ninguém estava lá para me dar consolo. Disse para mim mesma, estou aqui e amo-te! Adormeci segurando o moleskine contra o peito...
Em Bali palavras sábias disseram-me que para encontrar o equilibro que procuro, preciso de manter os pés agarrados tão firmemente à terra como se tivesse quatro pernas em vez de duas, que tenho de olhar para o mundo não através da cabeça mas sim através do coração. Dizem que me preocupo demasiado. Que deixo-me levar pela emoção e pelos nervos. Disseram-me também que estava no sítio certo para procurar o equilíbrio! E foi isso que fiz...
Tudo se tornou delicioso. Tudo o que tinha de fazer era perguntar a mim mesma todos os dias, “ o que gostarias de fazer?” “o que te daria de prazer neste momento?” Para mim foi importante descobrir o que não queria fazer em Bali quando finalmente aceitei desfrutar os prazeres que ali se ofereciam. São tantas as manifestações de prazer em Bali que eu não tinha tempo para as experimentar a todas. Acabamos por ter de eleger um prazer principal, caso contrário ficamos confundidos.
E foi daí que a felicidade começou a invadir todas as minha moléculas.
Na minha vida , já fiquei acordada toda a noite para fazer muitas coisas: amor, discutir com alguém, conduzir longas distancias, dançar, chorar, preocupar-me, mas nunca tinha sacrificado o sono de uma noite inteira para ficar a meditar. Porque não agora? Honestamente acho que não sou boa nisso. Com a mente tão desassossegada, turbulenta e forte torna-se difícil de ser dominada. No entanto tentei, quis tentar a via do ioga. Como a maioria dos humanóides, tenho o fardo a que os budistas em Ubud chamam mente de macaco, os pensamentos que passam de ramo em ramo, parando apenas para se coçar, cuspir e gritar. A minha mente oscila entre o passado distante e o futuro incognoscível, aflorando dezenas de ideias por minuto, indisciplinada. Isto em si mesmo não é necessariamente um problema, o problema é a ligação emocional que acompanha o pensamento. As nossas emoções são escravas dos nossos pensamentos e nós somos escravos das nossas emoções. O outro problema com todo este balouçar por entre os ramos do pensamento é que nunca estamos onde estamos. Estamos sempre a remexer o passado ou a espiar o futuro, mas raramente descansamos no presente. O professor Nyoman dizia para eu me concentrar, conseguir encher o corpo inteiro de uma luz eléctrica eufórica que ele tanto chamava de taksu .. não posso dizer que não tentei ..
Mas foi neste lugar que encontrei a resposta. Podemos ser nós próprios a acabar com isso a partir de dentro de nós. Não só é possível, é essencial.
A sugestão de Nyoman é que para meditar, basta sorrir. Sorrir com o rosto, sorrir com a mente, e a boa energia vem ter connosco para limpar a má energia. Sorrir até com o fígado. Pratica hoje á noite no hotel, dizia-me ele. Não há pressa e não tentes demasiado.
Nyoman convidou-me para jantar e eu aceitei, falámos de tudo um pouco, inclusivé de alguns assuntos pessoais meus que me senti à vontade de abordar com ele. Ouviu-me serenamente, e depois disse que ainda iria sofrer muito, mas a única coisa que teria de fazer seria de conseguir centrar em mim mesma para que conseguisse ter força para lutar, de construir as minha defesas e despertar a minha consciência. A maior parte da humanidade tem os olhos tão cheios de poeira da desilusão que nunca veriam a verdade, por mais ajudas que tivessem.
Prometi a mim mesma não albergar pensamentos mórbidos. Nesta mesma viagem ensinaram-me que o porto da minha mente é uma baía aberta, o único acesso à ilha do meu eu. Esta ilha já passou por algumas guerras, é verdade, mas está agora empenhada na paz sob o governo de um novo líder (eu) que instituiu novas politicas para proteger o lugar. Há leis muito mais rigorosas sobre quem pode entrar nesse porto. Ele não voltará a albergar pessoas com pensamentos maus e abusivos, navios de pensamentos com peste, navios de pensamentos escravos, navios de pensamentos em guerra.
Podemos vir a perceber que obsessões de longa data desapareceram finalmente ou que padrões desagradáveis acabaram por mudar. Pequenas irritações que outrora nos deixavam loucos já não são problema, ao passo que velhas angústias que em tempos se tinham tornado num hábito já não serão toleradas cinco minutos que seja. Os relacionamentos venenosos são postos de lado e pessoas mais luminosas e salutares começam a chegar ao nosso mundo.
Durante esta viagem vi o meu ego voltar da mesma forma como vemos uma fotografia Polaroid revelar-se, tornando-se mais nítida a cada instante que passa, primeiro um rosto, depois as rugas à volta da boca, as sobrancelhas, sim, agora está terminada: uma imagem do meu velho eu!
Sempre que saio do hotel, Mr Gous e os outros empregados que estão na recepção perguntam-me onde vou e sempre que regresso perguntam-me onde estive. Quase consigo imaginar que mantêm mapas minúsculos nas gavetas da secretaria sobre todos aqueles que amam com marcadores que indicam onde estão a cada momento, só para terem a certeza que está tudo controlado. De noite vou de mota até ao cimo dos montes e através de socalcos de arroz, com vistas lindas e verdes. Consigo ver as nuvens cor-de-rosa reflectidas nas águas dos arrozais, como se houvesse dois céus. Pelo caminho, passei por homens, mulheres, crianças, galinhas e cães, cada um à sua maneira, estavam ocupados a trabalhar, mas não tão ocupados que não pudessem parar para me cumprimentar. Não dá para acreditar na quantidade de beleza desnecessária que por aqui há. Posso apanhar papaias e bananas directamente das árvores. O universo sonoro também é espetacular, grilos e rãs numa orquestra ao vivo.
Mas tenho que conhecer outros sítios, e todos os meus amigos do hotel ajudaram-me a arrumar as coisas e despediram-se de mim emocionados.
Para já, tudo o que posso dizer com certeza é que adorei as casas que alugei e que todas as pessoas em Bali, sem excepção, foram muito boas para mim. Mas seja lá o que for que os balineses precisam de fazer para manterem o seu equilíbrio isso é lá com eles. O que estava ali a fazer é a trabalhar no meu próprio equilíbrio e este continuava a parecer-me o clima propício para o fazer.
Os homens, os turistas, com a sua beleza, são diabolicamente atraentes ou cruelmente bem parecidos ou surpreendentemente fisicamente divinais. Lembro-me que revi o meu registo romântico, e não me pareceu ser muito diferente (terei bom gosto talvez, ou talvez mais eles a mim) .. mas depois tem sido uma catástrofe atrás da outra. Quantos mais tipos de homens diferentes posso tentar amar e continuar a falhar? Penso nisto desta maneira, se uma pessoa tivesse dez acidentes de aviação uns atrás dos outros, não acabariam por lhe tirar a carta? Não iria quase querer que o fizessem? O que sei é que estou esgotada pelas sucessivas consequências de uma vida de escolhas precipitadas e paixões caóticas.
Não era o momento de procurar romance e de complicar ainda mais a minha vida já de si complicada, mas sim de procurar aquele tipo de serenidade e paz que só a solidão pode proporcionar. Conheci pessoa lindas de coração, pessoas que foram a Bali por diversas razões. Algumas de coração partido, outras para surfar e outras para conhecerem pessoas e por diversão. Quando me perguntaram o que fui lá fazer, respondia, vim encontrar-me em inúmeros aspectos. Bebíamos ora Bintang ora vinho, comíamos juntos e contávamos uns aos outros as histórias mais bonitas de que nos conseguíamos lembrar sobre os nossos antigos companheiros e amigos que ficaram no pais de origem, só para libertar a dor de toda aquela conversa sobre perda.
No outro dia, juntávamo-nos na praia a ver as perigosas ondas e os surfistas castanhos, brancos, indonésios e ocidentais a deslizarem na água como fechos de correr que se abrem nas costas do vestido azul do oceano. Vemo-los a desaparecer contra os corais e rochedos para os vermos depois ressurgir para apanharem outra onda. Grandes malucos! Ás vezes descobríamos calmas extensões de oceano azul e nadávamos todo o dia, dando-nos mutuamente permissão para começar a beber cerveja ou sumos naturais a toda a hora. A minha curiosidade é tão insinuante que quando dou por mim já fui convidada para ir viver durante um ano com a família do reparador de pranchas e de barcos.
O resto do tempo, limitava-me a estar sentada a vigiar. Vigiava os meus pensamentos, vigiava as minhas emoções, vigiava os pescadores. Levei algum tempo a mergulhar no verdadeiro silêncio do pôr do sol. Mesmo depois de ter parado de falar, descobri que era o melhor que podia fazer enquanto via o sol a desaparecer no fundo do horizonte. O melhor por do sol de sempre! Nesta viagem ..chorei muito. Rezei muito. Era difícil e aterrador, mas eu sabia isto: houve muitos momentos que nunca tinha querido estar e nunca desejaria ter ali alguém comigo. Sabia que precisava de fazer aquilo e que precisava de o fazer sozinha!
Nos últimos dias que por ali passei, o resort estava impregnado de um sentimento semelhante à da melancolia que se sente nos últimos dias de despedida. Segundo parecia, todas as manhãs havia mais algumas pessoas e bagagem a entrar no táxi para irem embora. Não havia pessoas a entrar de novo. Segundo Wayan (a dona do resort) estava a chegar o fim de Agosto, com ele o lugar ia acalmar durante uns tempos...
...e foi tudo ainda mais difícil, quando fui eu que tive de dizer adeus!!
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