terça-feira, 5 de abril de 2011


Há uma palavra que ninguém gosta de ouvir de um médico. É tão má que, na maior parte das vezes, não a pronunciamos e arranjamos um eufemismo para descrever a doença. São crianças, adultos, idosos e adolescentes. Brancos e negros. Ricos e pobres. Mas num momento da vida, todos tiveram o mesmo destino. Muitos são sobreviventes, outros ainda estão a lutar. Muitos também são rostos de esperança. Sou alguém que "sentiu isso" (ou sente).
A propósito dos blogues ditos pessoais, uma amiga minha disse-me há tempos que é preciso ser muito maturo e muito contido para conseguir escrever sobre o que se sente sem evidenciar as próprias fragilidades. "Obviamente", dizia-me, "não é para todos". Para não variar muito, reconheço-lhe inteira razão no que diz.
Julgo que maturidade e a contenção de que a minha amiga falava nada têm que ver com a idade, nem com as circunstâncias de vida das pessoas, nem com a arte e o engenho para a escrita, mas sim com o modo como as pessoas estão (bem ou mal) estruturadas. Desnudar as fragilidades em forma de escrita, clamar aos sete ventos o quanto se está a sofrer para, com isso, exercer pressão sobre o alegado causador do sofrimento é, no dizer dessa minha amiga, uma forma como outra qualquer de chamar à atenção, porque quanto mais desgraçadinho se diz que se é, mais simpatia se gera. E há gente que se basta com isso, porque é precisamente isso que procura.
É bem verdade que atraímos aquilo que procuramos. Quem adopta o discurso do "ai que mal eu estou" só atrai gente que, em idênticas circunstâncias, também acha que a única saída é chorar pelos cantos. A dado passo, já ninguém sente mais nada por aquela a não ser pena e, nessas situações, a pena alheia é tão útil como um penso rápido sobre uma ferida profunda. A única coisa que ela dá ao sofredor é uma zona de conforto momentânea, que rapidamente se esfuma no ar. Logo a seguir, lá tem o desgraçadinho de ir correr chorar-se um pouco mais, para que venha de lá outra pancadinha nas costas, mais uns minutos de sensação de que há alguém no mundo que o compreende e está solidário consigo. E isto torna-se um ciclo vicioso, um registo permanente, cansativo, vazio, desprovido de qualquer substância, registo esse infelizmente tão frequente em tantos blogues, internet fora.
É muito tramado ter de curar as feridas sozinho, lambê-las como fazem os cães, ficar no silêncio a ranger os dentes, adormecer e acordar com os olhos esbugalhados ao longo de meses e, mesmo assim, durante todo esse tempo, sair à rua com a cabeça erguida. É muito mais fácil exibir com alarido os cortes sangrentos, esperar deitado no chão que venha de lá alguém fazer o curativo, carpir com estardalhaço as mágoas, dizer que não se dorme e mostrar profundas olheiras, enfiar-se em casa e esperar lá pelas visitas que haverão de levar a canja de galinha à cama. Mais fácil, de facto, mas muito menos dignificante.
A diferença entre os que fazem uma e outra coisa é a mesma que distingue os heróis dos cobardes. Heróis são aqueles que, mesmo debaixo de fogo, não abandonam o campo de batalha, são os que são baleados mas não tombam à primeira, nem à segunda, nem à terceira, são os que não perdem tempo a tentar colher a simpatia alheia, à espera que alguém lhes venha dizer palavrinhas de conforto enquanto eles esperneiam no chão, mas que se fazem à vida porque sabem que só eles mesmos é que podem fazer algo por si e pôr-se de pé novamente. Heróis são os que, quando tudo o que apetecia era ficar mergulhado no desespero e na solidão, saem da cama todos os dias, ainda que a muito custo, para enfrentar os amigos que não sabem (nem têm de saber) o que se passa, os colegas de trabalho e as suas manias irritantes, a familia a quem se oculta a dor por protecção, os desconhecidos que merecem amabilidade, ainda que amável seja a última coisa que apetece ser naquelas circunstâncias. Heróis são os que preferem partir a quebrar, os que preferem dar e receber indiferença à pena, os que fazem das tripas coração para suportar o dias um atrás do outro quase desfeitos, mas não acabados, os que são capazes de falar do que sentem sem se vitimizarem em cada frase que dizem ou escrevem.
Nos momentos de crise, nos momentos de tragédia pessoal, temos de ser heróis de nós mesmos, heróis da nossa salvação das desgraças a que a vida nos conduziu, sem questionar se o que nos está a suceder é justo ou merecido. As mais das vezes não é, mas isso é o que menos importa. O que importa é que nos aguentemos na tempestade até à bonança, que sobrevivamos ao conflito até que cheguem tréguas e isso não se alcança com dramas, penas e pancadinhas nas costas. Isso faz-se tendo coluna vertebral, bom-senso e discrição - a tal maturidade e contenção de que falava a minha amiga. O resto são floreados decadentes, disparates voláteis, palavreado atirado para o ar do qual, daqui a uns anos, todos até os que o disseram ou escreveram, havemos de rir muito.

Sem comentários:

Enviar um comentário